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Criatura e Máquinas : a nova fronteira da consciência

Atualizado: há 6 dias

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1. O novo tipo de divisão

Há séculos, a humanidade desenha fronteiras no mapa, linhas que separam territórios, crenças, ideologias. Mas agora, um novo tipo de divisão começa a emergir. Invisível, silenciosa, atravessa não apenas nações, mas consciências.

Não se trata mais de quem domina o poder político ou o capital econômico. A nova fronteira é ontológica: separa modos de ser.

O escritor Wendell Berry, ainda no ano 2000, intuiu esse corte profundo ao dizer:

É fácil imaginar que a próxima grande divisão do mundo será entre pessoas que desejam viver como criaturas e pessoas que desejam viver como máquinas. (1)

Vinte e cinco anos depois, a profecia se cumpre diante de nós.

De um lado, o partido das máquinas, os que veem na tecnologia a promessa de libertar o ser humano de toda limitação. Apostam na fusão com algoritmos, na expansão ilimitada das capacidades, na ideia de que eficiência é sinônimo de evolução.

Do outro, o partido das criaturas, aqueles que desconfiam da velocidade, que valorizam o corpo, a presença, o vínculo. Que intuem que talvez o que nos torne humanos não seja o poder de criar sistemas inteligentes, mas o de permanecer sensíveis.

O futurista David Mattin chamou essa tensão de “a nova batalha cultural do nosso tempo”: um embate entre quem deseja acelerar o salto tecnológico e quem busca reaprender a viver como um ser vivo. (2)

Ele não fala apenas de política ou de ciência. Fala de um choque existencial, uma disputa entre duas cosmologias: uma que acredita que o ser humano é uma máquina aperfeiçoável, e outra que lembra que somos parte de um ecossistema vivo, interdependente, finito.

Essa divisão não está apenas lá fora. Ela atravessa cada um de nós:

  • Entre a ânsia de produzir mais e o desejo de respirar.

  • Entre a voz que quer otimizar e a que pede sentido.

  • Entre o impulso de vencer o tempo e a sabedoria de habitá-lo.

Vivemos o início de uma era em que a grande questão já não é o que a tecnologia pode fazer, mas quem nos tornamos ao usá-la.

E talvez a pergunta mais urgente seja esta: o que ainda significa viver como uma criatura em um mundo que insiste em nos transformar em máquinas?

2. O paradigma da máquina e o que está em jogo

O século XX foi o apogeu do pensamento mecânico. Aprendemos a enxergar o mundo, e as organizações, como engrenagens que precisavam funcionar com precisão e previsibilidade. A lógica industrial moldou não apenas fábricas, mas também escolas, governos e relações de trabalho. Tudo se tornou processo, controle, eficiência.

Esse modelo foi poderoso. Produziu riqueza, ampliou conforto, reduziu distâncias. Mas junto dele cresceu uma ilusão: a de que tudo o que é vivo poderia ser domado, mensurado, replicado. Passamos a acreditar que o humano também poderia ser calibrado como uma máquina e confundimos evolução com aceleração.

No ambiente corporativo, esse paradigma se traduz em estruturas rígidas, metas desumanizadas e uma obsessão por produtividade. As empresas foram ensinadas a acreditar que o sucesso está em eliminar erros, reduzir variações, prever cada movimento.

Mas o preço da previsibilidade foi alto. Quando a vida é tratada como linha de produção, o sentido se esvai. Pessoas se tornam funções. Decisões perdem a alma. E, como toda engrenagem, o sistema só continua girando à custa de energia humana, até o esgotamento.

Hoje, essa mesma lógica renasce com novos códigos. A Inteligência Artificial promete corrigir imperfeições, eliminar incertezas, substituir o que é falho. A tentação é grande: acreditar que o humano pode ser superado por sua própria criação.

Mas há algo que a máquina ainda não compreende: o erro como fonte de aprendizado, o silêncio como parte do diálogo, o tempo como espaço de maturação. No fundo, o paradigma da máquina é a crença de que a vida precisa ser controlada para ser segura. E é justamente essa crença que agora começa a ruir. Porque tudo o que é vivo, pessoas, equipes, organizações, só floresce quando pode respirar.

3. O chamado das criaturas e a contraparte viva

Se o paradigma da máquina busca previsibilidade, o das criaturas abraça o mistério. A vida, afinal, não é um sistema a ser controlado, mas um campo de relações a ser cultivado. As criaturas sabem que o tempo da natureza não se acelera: sementes precisam germinar, raízes precisam firmar-se antes que o caule se erga.

É assim também com pessoas e organizações. Crescimento real exige maturação e maturação exige presença. Ser criatura é reconhecer-se parte de algo maior. É entender que a interdependência não é fraqueza, mas força vital. É o oposto da lógica da escassez que move o paradigma da máquina.

Quando nos reconhecemos como criaturas, lembramos que o valor de uma equipe não está apenas em sua performance, mas em sua capacidade de regenerar-se, de aprender, de cuidar do solo comum onde todos crescem. Nas organizações vivas, a inteligência não está concentrada no topo, mas distribuída em cada célula. A liderança não é comando, mas cultivo. A estratégia não é previsão, mas escuta, um diálogo constante com o que emerge.

Como uma floresta, esses sistemas se adaptam, renovam e fortalecem pela diversidade. Neles, o erro não é falha: é parte do aprendizado. O conflito não é ameaça: é energia de transformação. Autopoiese é o nome desse fenômeno. O poder que cada organismo tem de se produzir e se manter vivo, recriando-se em relação ao ambiente.

Quando um líder age com consciência, ele se torna esse tipo de organismo: capaz de gerar novas formas de vida organizacional a partir de dentro, sem precisar de controle externo. O chamado das criaturas é, portanto, um convite à humildade e à coragem. Humildade para reconhecer que não somos deuses da criação, mas parte dela. Coragem para desacelerar quando o mundo inteiro pede pressa. 

Talvez o verdadeiro progresso não esteja em sermos mais rápidos, mas em sermos mais inteiros.

4. A encruzilhada da liderança e o olhar vivo

É nesse ponto que a tensão entre criaturas e máquinas ganha forma concreta: nas decisões de quem lidera. Cada reunião, cada política de gestão, cada métrica escolhida é um ato que revela qual paradigma está no comando.

Muitos líderes ainda acreditam que liderar é controlar, medir, corrigir. Essa lógica produz resultados, sim, mas também cansaços profundos, silêncios criativos e um vazio que a produtividade não preenche. Outros começam a perceber que liderar é criar espaço: espaço para que o novo surja, para que as pessoas se expressem, para que o inesperado se torne possibilidade.

O líder-máquina quer previsibilidade; o líder-criatura cultiva presença. Um gere processos, o outro desperta potências. No dia a dia, essa diferença se manifesta em gestos simples: escutar antes de responder. Fazer pausas conscientes em meio à urgência. Substituir o controle do tempo pela curadoria da energia.

Liderar como criatura não é abandonar a técnica, mas humanizá-la. É entender que o dado informa, mas não decide; quem decide é a consciência que sabe interpretar o contexto e sentir o impacto. Em um mundo cada vez mais mediado por algoritmos, a nova competência essencial da liderança é discernir. Distinguir o que é funcional do que é essencial. O que é rápido do que é verdadeiro.

Essa é a encruzilhada da liderança contemporânea: entre o automatismo que promete segurança e a presença que oferece sentido. Toda vez que um líder escolhe o diálogo em vez do comando, a escuta em vez da pressa, ele está, ainda que discretamente, reescrevendo o futuro. Porque liderar hoje é mais do que conduzir pessoas — é reaprender a ser humano em meio às máquinas.

5. O futuro desejável entre o silício e o sopro

O que está em jogo, afinal, não é apenas o destino da tecnologia, mas o destino da própria humanidade. A questão não é se a inteligência artificial vai dominar o mundo, mas se seremos capazes de usá-la sem perder a nossa própria inteligência — a emocional, a ética, a relacional.

O futuro desejável não nasce da recusa do novo, mas da integração consciente entre o humano e o tecnológico. É o momento em que a máquina se torna extensão da vida, e não substituta dela. Para isso, é preciso que as organizações aprendam a sonhar de novo. Sonhar não no sentido utópico, mas como exercício estratégico de imaginação: visualizar o que ainda não é, mas pode vir a ser.

Futuros desejáveis são construídos quando colocamos o propósito — não o lucro — no centro da decisão. Quando as métricas de sucesso consideram não apenas o crescimento financeiro, mas o impacto humano e ecológico que deixamos pelo caminho. Essa é a nova fronteira da consciência organizacional: compreender que negócios são, antes de tudo, ecossistemas vivos. E que cada escolha — de produto, cultura ou modelo de gestão — é uma semente plantada no solo do amanhã.

A tecnologia é ferramenta; o humano é direção. O futuro desejável é aquele em que a inovação não substitui a vida, mas a serve. Onde máquinas ampliam nossa capacidade de cuidar, e não de controlar. Onde líderes são jardineiros da complexidade, não engenheiros da previsibilidade.

Talvez seja isso o que Wendell Berry pressentiu: a batalha final não será entre o homem e a máquina, mas entre duas formas de consciência. Uma que acredita que viver é produzir; outra que sabe que viver é participar. E é dessa escolha silenciosa e diária que nascerá o tipo de mundo que ainda podemos criar.

6. A pergunta que fica

No fim, tudo se resume a uma escolha íntima, quase invisível: como queremos habitar o tempo que nos foi dado? Podemos continuar correndo atrás de máquinas cada vez mais inteligentes ou podemos começar a cultivar a inteligência que já habita em nós. Podemos construir organizações que operam como algoritmos ou comunidades que respiram como organismos.

O futuro não será decidido por quem tem mais tecnologia, mas por quem tem mais consciência. Talvez viver como criatura, neste século das máquinas, seja o maior ato de coragem. Porque, quando o mundo inteiro acelera, permanecer humano se torna um gesto revolucionário.

E você, o que tem cultivado: código ou consciência?


Referências:


(1) BERRY, Wendell. Life is a miracle: an essay against modern superstition. Washington, D.C.: Shoemaker & Hoard, 2001.


(2) MATTIN, David. Creatures and machines: charting the course for 2024. New World Same Humans, 14 jan. 2024. Disponível em: https://www.newworldsamehumans.xyz/p/creatures-and-machines. Acesso em: 10 nov. 2025.

 
 
 

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