Autopoiese: da semente ao time extraordinário
- Cristiam B. Oliveira
- 1 de abr. de 2021
- 7 min de leitura
Atualizado: 31 de ago. de 2023

Essa é a segunda parte do relato das ideias apresentadas no evento “Organizações evolutivas: um olhar para a consultoria em gestão”. É muito bom, mas não obrigatório, que você tenha lido o artigo anterior: É hora de descongelar!.
Enfatizei, naquele escrito, o contexto de alta incerteza e constantes mudanças que as organizações estão enfrentando. O aprendizado aparece como solução radical para inovar e prosperar. Trouxe, ainda, seis ideias para você analisar seu negócio e implementar soluções poderosas.
Já no presente artigo, analisaremos o conceito de autopoiese como fundamento para a aprendizagem tanto pessoal quanto organizacional. Avalie, durante a leitura, como a adoção desse paradigma pode ajudar nas tomadas de decisões, especialmente, aquelas relacionadas à organização do trabalho, às estruturas e aos processos-chave do negócio.
Lembrei, ao escrever as primeiras palavras desse texto, uma atividade que fiz nos primeiros anos de escola. Acredito que deve ser uma prática ainda atual, minhas filhas e todos a quem perguntei também a realizaram. Falo do plantio do grão de feijão no algodão, um experimento simples, divertido e revelador. Você lembra de ter vivenciado isso? Assiste o vídeo com timelapse a seguir.
Observar a minúscula partícula germinar, desenvolver raízes, transformar-se em broto e crescer as folhas é mágico. Encontrei, há pouco tempo, no prefácio de “Presença: propósito humano e o campo do futuro”, uma fala que lembra que as árvores passam por esse mesmo processo:
“É comum dizer que as árvores vêm de sementes. Mas como uma pequena semente pode criar uma árvore enorme? Sementes não contém os recursos necessários para crescer uma árvore. Eles devem vir do meio ou ambiente em que a árvore cresce. Mas a semente fornece algo que é crucial: um lugar onde toda a árvore começa a se formar. À medida que recursos como água e nutrientes são absorvidos, a semente organiza o processo que gera o crescimento. Em certo sentido, a semente é um portal através do qual surge a possibilidade futura da árvore viva”.
Tenha essa imagem em mente na próxima vez que passar por uma árvore e invista um minuto para pensar na semente. A vida contemporânea nos afasta da observação dos fenômenos naturais porque compreendê-los passou a ser dispensável.
Os avanços do paradigma cartesiano-newtoniano tornaram possível um crescimento enorme na produção de conhecimento. Estudar cada parte, cada elemento, mostrou-se um método eficaz para compreender o todo. Passamos a aplicá-lo em todas as áreas de nossas vidas.
A divisão e organização metódica do trabalho, a especialização e a produção em escala trataram de viabilizar a disseminação da ciência. Sua aplicação na indústria tornou possível obter os benefícios de inúmeras coisas, sem conhecer suas causas. Atingimos condições de vida sem precedentes, basta contar que nos aproximamos de 8 bilhões de pessoas no mundo.
Esse modelo de aprendizagem trouxe muitas benesses, sem dúvida. Contudo, dividir tudo em partes menores e analisar as consequências de suas interações minuciosamente é muito difícil em sistemas complexos. Pode ser impossível.
A interação de inúmeras causas internas e sua dinâmica com elementos externos gera múltiplas possibilidades de sucesso ou fracasso das iniciativas e possibilidades de sobrevivência. O todo pode, assim, ser maior ou menor que a soma de suas partes, de maneira não linear, contrariando o raciocínio cartesiano e abrindo um universo de desafios.
As questões de sustentabilidade ambiental e do aquecimento global podem ilustrar. A dificuldade de medir com precisão o impacto causado pela existência de um ser ou de uma nação no planeta dá a chance de negar que esse impacto seja alarmante. A incapacidade de considerar todos os fatores que afetam a temperatura da Terra permite a alguns estudiosos e muitos leigos fugir do fato de estarmos causando essa mudança. Ainda que não seja possível dominar todas as partes é urgente reconhecer que precisamos ser cuidadosos com o meio ambiente.
Sistemas econômicos e negócios compartilham de situação semelhante. A quantidade de variáveis trabalhando para seu funcionamento exige da gestão um método empírico e adaptativo. Veio a mente a proposta evolutiva de Darwin? Sim, ela tem um apelo interessante quando propõe que o mais apto sobrevive.
A corrida por aptidão e a concorrência foram levadas ao extremo e intensificaram a visão das pessoas como objetos de produção. A meritocracia e o homem econômico mantiveram o crescimento, mas rechearam o mundo do trabalho de doenças laborais, físicas e mentais, e popularizaram os desvios éticos.
A proposta dos biólogos e filósofos chilenos Francisco Varela e Humberto Maturana fornece um modelo que pretende religar o homem à natureza. Pode, através de uma nova compreensão da ciência, ajudar na expressão do que há de mais nobre no ser humano.
Eles fundam sua tese na observação da capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios. São sistemas organizados e autossuficientes que obtêm do exterior o que precisam, produzem e reciclam seus próprios componentes diferenciando-se. A autoprodução e autorregulação acontecem com trocas constantes com o meio. O externo apenas desencadeia determinadas mudanças em sua própria estrutura e não através de um agente externo.
Vejamos a seguir algumas noções biológicas, mas associadas ao cultural, identificadas por Maturana. Ele fala com simplicidade, como a mãe explica à criança que deve alimentar-se bem, comer alimentos variados e de alto teor nutritivo para que cresça saudável. Isso porque o alimento converte-se em ossos e músculos fortes, fornecerá energia e resistência. Será transformado em tudo o que precisa.
Somos como todas as criaturas vivas feitas de moléculas. Somos seres autopoiéticos moleculares, temos a capacidade de criar a nós mesmos. Dependemos do ambiente para obter o que necessitamos, mas somente as mudanças das nossas estruturas, feitas por nós mesmos, podem nos definir.
Autoprodução não é ser autossuficiente e nada existe sem que as condições necessárias a sua existência. Não é possível a vida fora do ambiente ecológico contendo o suficiente e necessário ao seu surgimento e subsistência. A sobrevivência dos organismos vivos está ligada à coerência com as circunstâncias que a permite
Consistimos em sistemas únicos determinados em nossa estrutura. O externo não nos específica, respondemos conforme nos fabricamos. E nossa configuração é alternante, em contínua mudança. Conservar essa capacidade e adaptar-se ao meio são condições sistêmicas para a vida. A palavra adaptação indica a acomodação às circunstâncias que permitem a sobrevivência.
A compreensão da manutenção da vida levou Maturana a elucidar também como aprendemos - fazer é conhecer:
“A condição última de nossa natureza é precisamente este "ser humano" que se faz (fazemo-nos) continuamente a si mesmo, num operar recursivo, tanto de processos autopoiéticos como sociais (linguagem), com os quais se gera continuamente a autodescrição do que fazemos. Não é possível conhecer senão o que se faz”.
Para validar de maneira muito fácil, basta verificar como você se apresenta a alguém. Nasci em Caxias do Sul, moro em Florianópolis, estudei Administração e Filosofia, atuo como professor e consultor organizacional, etc. As características têm menos relevância, pois os fazeres nos definem mais precisa e completamente.
A essa altura da conversa deve ter lhe ocorrido que os fazeres se entrelaçam com a educação, a cultura e outras interações sociais que mantemos durante a vida. As intuições decorrentes da tese da autopoiese são poderosas e trazem à tona questionamentos de como experimentamos o mundo e como aprendemos, de fato. A verdade é que a ideia de diálogo, linguagem e seu exercício exige um olhar muito atencioso. A transformação ocorre pelas circunstâncias, a convivência é formadora.
Retorno a fala inicial de Maturana na USP, “As expectativas nunca se cumprem” ². Era um alerta sobre a palestra que estava iniciando e extende-se a todas as relações humanas. Assumir que não se pode entregar o que os outros esperam é, à primeira vista, frustrante. Se encarado com mais profundidade, é revolucionário. Isso fornece a liberdade para escutar, para falar e para viver mais plenamente.
Aprofundando as relações entre biologia e aprendizagem, ele avança: “toda a afirmação cognitiva convida a pergunta: como sabe?”. O como remete a uma prática, ao agir e produzir algo. Conhecer acontece pelo exercitar, só podemos falar pelo fazer. A pergunta pelo ser só é possível pela especulação, pela imaginação, pela criatividade. O conhecer tem a ver com a práxis, com a prática, a ação concreta.
Pode-se aplicar esse raciocínio a todos os contatos que mantemos. Pense na comunicação com a sua equipe, familiares ou vizinhos. Acontece porque somos totalmente responsáveis pelo que dizemos, pensamos ou fazemos. Escapa, no entanto, da nossa responsabilidade o que os outros escutam, percebem, avaliam. Por sermos sistemas moleculares autopoiéticos é que não podemos especificar o que os outros escutam do que dizemos.
O que acontece com os seres vivos está ligado a eles mesmos. O que acontece com os grupos humanos também. Negócios seguem a mesma lógica, são as estruturas internas que tornam o sucesso possível. Os times são autopoiéticos, ou seja, têm a capacidade de criar a si mesmos.
A busca pelas melhores oportunidades está ligada à capacidade de aprendizado, ou seja, sua capacidade de agir, transformando-se e aproveitando de maneira ótima os recursos que o ambiente oferece. Ler e compreender o universo que está ao redor e ajustar seus processos e práticas é a chave para a sobrevivência. Times extraordinários estão em constante aprendizado, se adaptando para prosperar.
Considere agora a sua empresa. O que a define? Prédios e equipamentos disponíveis? Tecnologias que detém? A quantidade de colaboradores? Seus diplomas? Ou serão as soluções que desenvolvem? Os benefícios que chegam aos seus clientes? As entregas aos diferentes stakeholders?
As organizações também são seres vivos. Só podem ser o que aprendem e apenas conseguem aprender o que realizam. Como resolvem a equação conhecer-fazer? Como aprendem? Como garantem que a comunicação seja assertiva? Como promovem a expressão máxima das capacidades de cada integrante da equipe?
Referências:
1 - SENGE, Peter et al. Prença: propósito humano e o campo do futuro. São Paulo: Cultrix, 2007.
2 - Conferência Internacional Huberto Maturana - Fundação do Livro e Leitura de Ribeirão Preto, 2018. Disponível em: https://youtu.be/G_dF9urCZcQ Acesso em: 23/03/21.
3 - Autopoiese ou autopoiesis vem do grego auto "próprio", poiesis "criação".
4 - MATURANA, Humberto R.; VARELA, Francisco J.. A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Editorial Psy, 1995.
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